quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Alquimia Interior

 

Um processo de mutação psicossomático
A alquimia tem diversas dimensões operativas, sendo a mais conhecida a que se refere ao alquimista no seu laboratório “externo”, habitualmente imaginado como cheio de símbolos e instrumentos “químicos” estranhos. A Alquimia Interior, muito embora utilize os mesmos símbolos e operações arquetípicas, trabalha num único laboratório, o “interno”, que é o próprio indivíduo em processo de transformação.

A alquimia não tem objecto.
A alquimia é uma prática intuitiva não cultural e não mental. Não há alquimia sem consciência e alargamento do campo da percepção. A alquimia é a capacidade de operar transformações, ou mutações, na estrutura da realidade a partir da intensificação da própria consciência. A alquimia fala sobre o desconhecido, sobre algo ao qual ninguém dá um nome. É este o aspecto fascinante da sua prática – ela é a figuração da consciência intrínseca, proporcionando um discurso sobre algo que ninguém sabe o que é. Gerou, no entanto, muita coisa concreta sem que se possa estipular qualquer objecto. Pode-se dizer que é uma invenção de génio, a de criar ao nível real, no laboratório, e não ao nível intelectual, o mistério da consciência intrínseca. A matriz do homem como o seu próprio laboratório, que a alquimia cria, é universal e encontra-se em todas as civilizações. Da China até ao Médio Oriente e ao Ocidente, atravessa transversalmente o mundo. O problema da alquimia é uma questão prática,  não é especulativa nem interpretativa ou seja, não é um objecto cultural. Não interessa onde é que ela nasceu, e não é possível fazer-se um estudo comparativo das alquimias do Oriente e Ocidente.
O homem como laboratório de si próprio.
A alquimia parte do princípio que não é necessário laboratório “externo” para encarnar o princípio da consciência intrínseca, para a operação de depuração que permite encarnar o mistério do princípio crístico. A alquimia, neste sentido, implica que a relação espírito / matéria se alterará no futuro. Já Eugène Canseliet, que forneceu informação sobre o mítico Fulcanelli, deu muitas pistas para dar a compreender que a alquimia se constrói em redor de um objecto que está fora de alcance do intelecto e que, pelo contrário, se trata de uma prática sobre si próprio. A alquimia como química / física pré-Lavoisier foi uma espécie de hiperquímica com uma imensa quantidade de receitas e analogias tradicionais que não tem propriamente a ver com a alquimia da qual falamos aqui. A prática base daquela é a sublimação ou seja, o processo de deixar a matéria “cozer” vezes sem fim ao sol ou ao fogo, para chegar à sua transmutação. A alquimia, por outro lado, é a ciência das relações do homem com o cosmos e a natureza.
Assim, em gravuras antigas, o laboratório do alquimista abrange sempre um oratório, lembrando a velha máxima dos monges cristãos “ora et labora”, ou seja, procura primeiro a tua inspiração em Deus (em ti) e depois trabalha no laboratório da Terra. O que, por outras palavras, significa encontrar primeira referências em si mesmo através do auto-conhecimento e da consciência de si mesmo. A consciência intrínseca é o material da alquimia, não a consciência psicológica. A alquimia põe à nossa disposição processos de alargamento do campo da consciência, e não se ocupa da consciência psicológica que dá apenas pelos gastos do dia a dia.
A transmutação da percepção.
A alquimia traz mais consciência a todas as coisas e proporciona a capacidade de operar transmutações no campo da consciência. Quem não alarga conscientemente – cosmicamente – a sua consciência, fica ao nível da química. Neste caso não pode haver transmutação porque o campo de consciência do operador não deixa que esta transmutação aconteça. Para ela acontecer, é preciso ter um olhar de lince, uma percepção alterada. É no oratório que acontece o trabalho sobre si mesmo para alcançar este olhar de lince, esta percepção apurada que permite distinguir entre uma simples operação química e a alquimia propriamente dita. Assim, o código da alquimia tem a ver com a percepção.
A Alquimia – uma demanda de sageza.
Como é possível descodificar os antigos tratados de alquimia? É preciso ver que o texto em si não interessa. O que os entendidos sempre fizeram, é seleccionar trechos do texto para com eles compor outro texto que é já um texto que nasce da experiência própria e não pode ser ensinado. A leitura passa sempre pela prática.
Um desses tratados antigos é o Mutus Liber, composto apenas por imagens, aproveitando da faculdade humana de representação do mundo e de auto-representação através de imagens que surgem, por exemplo, no sonho. Este é fruto da faculdade humana de construir o mundo em imagens, faculdade explorada, por exemplo, por C.G.Jung, sobre o lado arquetípico dos sonhos e o seu respectivo significado.
Os sonhos significativos dão conta da mudança interna do homem, dão ordem ao caos das nossas percepções. São tentativas de encontrar soluções através da organização do caos numa espécie de cogitação sobre o sentido da vida ou da dimensão filosófica da vida. São sonhos de sageza. O sonho é um livro sem texto, é um livro de imagens. Em nós começa a primeira leitura, nós somos o livro. A alquimia é uma demanda de sageza na vigília, fora do eixo do dia a dia. Leva-nos a encontrar outra relação com a realidade, um outro olhar sobre as coisas. Como um estereograma, permite-nos descobrir o que é significante. Como nos tratados antigos de alquimia, também no texto da vida diária só uma ínfima parte interessa. É esta que somos levados a descobrir através da transmutação alquímica.
O maharaja e o mendigo.
Uma história indiana explicita esta noção de que se esconde, em cada dia da nossa vida, um tesouro que tem de ser desenterrado. Era uma vez um maharaja que vivia numa corte faustosa. Todos os dias, na altura do almoço, um mendigo entrava no seu palácio e oferecia-lhe um fruto fresco, acabado de colher. O maharaja mandava um servo receber o fruto e guardá-lo nas caves do palácio. Este ritual repetia-se todos os dias, e o maharaja, no seu mais íntimo, perguntava-se qual o sentido desta oferta sem encontrar uma resposta. Um dia, quando o mendigo se aproximou de novo como o fruto na mão, um macaco saltou e roubou o fruto. Depois sentou-se ao pé do trono e começou a trincar o fruto. Para espanto do maharaja e de toda a corte, o caroço do fruto emitia um imenso brilho e quando olharam de perto, descobriram que se tratava de um lindíssimo diamante. Espantado, o maharaja mandou um servo ir buscar os outros frutos que já estavam meio podres. Todos tinham no interior um diamante brilhante.

A suspensão entre os dois pólos – morte e ressurreição.
A prática da alquimia inicia-se no equinócio da Primavera – a “primeira verdade” só pode ser descoberta nesta época do ano, quando tudo volta à vida, quando se celebra a morte e a ressurreição. A primeira verdade sobre as coisas começa a ser perceptível, a Primavera começa em nós. A alquimia permite este trabalho sobre a consciência de si próprio, numa prática meditativa que explora o limite da mente discursiva, e que é também possível no sonho lúcido, num sonho como o de Jacob, por exemplo, que sonha com a subida e descida dos anjos na chamada Escada de Jacob, representando a relação funcional entre micro e macrocosmos. Os anjos, neste sonho, querem acordar Jacob que está num profundo sono.
Temos de despertar deste sono para perceber, dentro do campo da consciência, a morte e ressurreição. O seu símbolo é o ovo, no qual está a totalidade da vida. Nós somos o adormecido que não acorda, que vive apenas para os gastos. É preciso ir mais além, entrar neste jogo da consciência, este fluxo constante entre o Sol e a Lua, entre as polaridades do mundo. Este fluxo entre os dois extremos existe continuamente. A questão é como dar por ele e vivê-lo sem se ficar pela visão de “dentro” e “fora”. O que é preciso é ficar na suspensão entre os dois pólos. 
O trabalho interno.
A alquimia é a sageza pessoal que encontra o nexo entre o dentro e o fora por além do movimento pendular da consciência psicológica. Permite perceber que entre dentro e fora não há diferença, que são uma e a mesma coisa.
A Primavera das coisas começa em nós, a transfiguração é possível: no estado mercurial os opostos são unificados sem contradição, fazem parte do processo de percepção, não há divisão na percepção, há unificação ou pura percepção.. No trabalho interno revela-se a qualidade alquímica da nossa consciência. Vemos então que as dicotomias não são contraditórias e a dualidade deixa de existir. A nossa percepção torna-se total, é parte integrante da unidade de todas as coisas.
A ferramenta da respiração.
Este é o Tao dos Orientais, que une o Yin e Yang, o mistério que liga os opostos. Esta consciência intrínseca de todas as coisas capta-se pela respiração. Desde que a sua prática seja consciente, permite a mutação, ou seja, permite ver o que é, e não o que parece ser. Deste modo, as ferramentas básicas estão à disposição de todos, não é preciso mestre nem discípulos. Cada um pode descobri-las por si mesmo, utilizando a respiração. É apenas necessário criar espaço e tempo em cada dia para utilizar estas ferramentas. Descobre-se então que a interacção da consciência altera tudo, o uso vibracional da consciência provoca um efeito de diapasão.
 
A alquimia como trabalho sobre a percepção, coloca-se no ponto de fuga, aponta a mutação da realidade, permite um tipo de percepção triangular, não somos sem emissor nem receptor, estamos em unidade com o cosmos e a natureza e descobrimos que a diferenciação não existe na realidade.

VQ

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